sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Parte II

Não havia mais seiva alguma nas medianas árvores de tronco largo. Num tom ofegante, o padrasto vira-se, levanta sua calça azul marinho, fecha o zíper e com um ‘tapinha’ nas costas dirige-se ao garoto:

- Bom garoto, já é hora de descer!- Sorri sarcasticamente- Não vai querer preocupar sua mãe, vai?

O garoto apenas vira-se e encara. Seu olhar continha raiva, era como palha bem seca queimando em dias quentes. Seu corpo foi sodomizado, ele tinha medo. Até quando durará todo sofrimento? Não sabia, a esperança já havia sido morta pelos toques doentios, fortes e selvagens.

Desce as escadas de madeira desesperadamente, passou por sua mãe que sempre soube o que acontecia, era cúmplice de algo tão normal e ao mesmo tempo revoltante. Não sabia se chorava, se gritava, se murmurava... Não! Era melhor ficar calado, o mundo... O mundo não ouve seus pensamentos.

Seus passos assumiam forte sonoridade ao tocar no frio assoalho, finalmente tinha chegado, ao seu quarto no fim do corredor, bem escondido assim como seus segredos, cama de solteiro cheia de lençóis velhos, e uma pequena cômoda, sobre ela, apenas uma foto de seu falecido pai. Tira a roupa, entra no banheiro, e ao ver sua imagem no espelho cospe. Contemplava o fracasso naqueles tristes olhos. Uma lágrima solitária percorria o seu rosto, era como o orvalho puro naquela pequena planta verde-lodo que havia visto naquela manhã. Dirige-se ao chuveiro e o liga, a água descia levemente pelo seu corpo, mal conseguia se tocar, sentia nojo, o que se podia fazer? Era tudo tão rotineiro.

Ao terminar o banho, enrola-se na toalha, segue para a pequena cômoda e tira uma de suas roupas que eram pouquíssimas se vestindo rapidamente, não se importava, ninguém veria mesmo sua aparência. Sua mãe o chama para a copa, era hora de jantar. Senta-se na mesa em meio a olhares perversos de seu padrasto e a cumplicidade de sua mãe:

- O jantar está na mesa! Podem se servir. – Diz ela.

Não muito surpreso olha para os restos da sopa de ervilhas requentada, que sua mãe havia comido no almoço. Pega a colher e come generosamente, afinal, seus serviços domésticos haviam ocupado todo o tempo de se alimentar e seu estomago doía. O jantar era vago, aquilo não era uma família. Famílias conversam em meio ao jantar, por mais fúteis que sejam, palavras precisam ser trocadas.

Ao terminar o jantar, pega os pratos deixados e os leva à pia, como já esperava, havia uma pilha de louças sujas, enquanto lavava, via na janela de vidro em frente a pia, sua vizinha executando a mesma tarefa, observava suas mãos tocando levemente aquela cerâmica. Movimentos tão suaves e delicados que chegavam a ser excitante, por um momento seus pensamentos viajaram para um lugar bom, no entanto a voz de seu padrasto, mandando-o se apressar interrompera.

Ao terminar, dirige-se ao quarto, estava exausto, ao chegar na cama deitou-se. Embora quisesse dormir, as mãos daquela mulher não saíam de seus pensamentos. Era como se ele sentisse aquelas mãos no seu corpo. Levantou-se, molhou seu rosto, e finalmente conseguiu dormir. As folhas rodavam no jardim, era como se um milagre estivesse acontecendo. Um desejo fora de todo aquele sistema estava nascendo, isso sim é inesperado, era como o trigo nascendo em meio ao joio.

(continua)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Folhagens

Hoje estive pensando em fazer um livro, então porque não postar em um blog? Comecei agora, divirtam-se. ;D


O vento era frio, as casas pareciam brinquedos descartados por crianças egoístas, aqueles estáticos embaixo da cama, esperando que alguém os utilize, a paisagem era mórbida. E o Sol? Bem, o Sol havia desaparecido há muito tempo para todos que ali viviam. Era tudo minuciosamente calculado, rápido e sensato. As folhas acompanhavam o rumo metódico da vida.

Ali estava ele, o menino que tudo via, com sua blusa vermelha, calção bege, tênis sujo e velho com o cadarço desamarrado, cabelo despenteado, unhas sujas e encardidas, pele maltratada e olhos inchados de um pranto que parecia não haver fim. Observava a última gota de orvalho da manhã que caía de uma minúscula planta verde-lodo, parecia insignificante, estabelecia rápidas analogias, mas quem se importa? Era apenas um menino em um frio vilarejo.

Uma voz estridente ecoava, era sua mãe, o chamava para executar seus afazeres domésticos. O garoto invejava seus vizinhos, todos iam à escola, menos ele, tinha que se dedicar àquele cárcere desejando avidamente dias de Sol. Limpava o piso de porcelanato que havia sido sujo propositalmente, esfregava o pano de veludo nas janelas de vidro emoldurado com madeira nobre. Lavava toda a louça da casa, um presente de casamento dos seus avós paternos. Era tudo bem limpo e cuidado, todo esse zelo era falso, apenas evitava a pior parte do dia.

Subiu a escada vagarosamente, tentava não fazer barulho algum, cansado, tinha que limpar o andar de cima, mas o pior ainda não era isso... O relógio era barulhento, era cinco horas e trinta e cinco minutos, o exato momento em que seu padrasto acordava. Por ironia do destino, havia esquecido de deixar seu despertador ligado. Andou cautelosamente, abriu a porta que parecia falar, o odor da bebida se exalava por todos os cantos. Seu ‘responsável’ estava bêbado, era melhor assim.

Silenciosamente esfregou cada cantinho do quarto, tirava as garrafas de vinho, e limpava o vomito disperso. Tirou as roupas sujas jogadas no armário branco-gelo, de repente uma perturbação na rua, de som irritante chama sua atenção, curioso, levanta-se e espia em uma brecha da veneziana. Sua vizinha estava discutindo com seu marido, ele já deveria saber, passou a vida inteira ali ouvindo discussões rotineiras. Era tarde demais, seu padrasto havia acordado ainda bêbado. O menino assustado sente a mão quente acariciando seu ombro.

Enojado, tem que se render aos gostos cruéis. As folhas no seu quintal faziam um triste balé de outono, as arvores já estavam secas.


(Continua)